Os EUA estão fora do Acordo de Paris. Saiba por que isso é mais regra que exceção
País tem relação historicamente conturbada com as negociações de clima, moldou acordo atual às suas circunstâncias internas e mesmo assim o abandonou
DO OC – Um dia depois das eleições presidenciais americanas, que se encerraram nesta terça-feira (3/10) e cujo resultado segue indefinido, acabou também a participação dos Estados Unidos no Acordo de Paris. Anunciado em 2017 pelo presidente Donald Trump, o movimento de saída do segundo maior poluidor do planeta do acordo firmado dois anos antes por quase 200 nações para reduzir o aquecimento global revoltou muita gente. Mas ele representa mais a regra do que a exceção na conturbada relação dos Estados Unidos com as negociações da ONU sobre mudança climática.
Em quase três décadas de história, o país parece se esforçar para manter-se fiel às palavras ditas pelo então presidente George Bush no primeiro tratado sobre o tema, firmado em 1992, quando garantiu que “o estilo de vida americano não está sujeito a negociação”. Na ocasião, durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio-92, Bush pai aceitou assinar a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, mas já levantava uma bandeira que desde então se tornaria foco de conflito em todas as negociações que viriam a seguir: a exigência de que os países em desenvolvimento (em especial China, Brasil e Índia) também assumissem responsabilidade na redução do aquecimento global para não deixar a economia norte-americana em “desvantagem”.
No ano seguinte à entrada em vigor da convenção, a primeira conferência do clima (COP-1), ocorrida em 1995 em Berlim, iniciou os processos de negociação de metas e prazos específicos para a redução de emissões de gases de efeito estufa. Ela deixou de lado, no entanto, a ressalva americana. As metas foram estabelecidas apenas para os países desenvolvidos, seguindo o princípio consagrado no Rio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” – ou seja, quem mais causou o problema, os países ricos, deveria contribuir mais com sua solução. Eram os primeiros passos para a criação do Protocolo de Kyoto, redigido no Japão em 1997. Sob o tratado, 38 países industrializados se comprometeram a reduzir suas emissões de gases nocivos ao clima em 5,2%, em média, até 2012, em comparação com os níveis de 1990.
O governo do então presidente Bill Clinton, que tinha como vice o ambientalista Al Gore, chegou a assinar o acordo, porém nunca o encaminhou para ser ratificado pelo Senado americano. De maioria republicana e por decisão unanime, a Câmara Alta havia rejeitado por antecipação, meses antes, a validação de acordos de redução de emissões de gases de efeito estufa que não estabelecessem metas também aos países em desenvolvimento. O Senado americano tem uma história de oposição a acordos multilaterais que impliquem no que eles consideram “violações de soberania”. Nunca ratificou, por exemplo, a Lei do Mar da ONU, nem as convenções da Unesco sobre repatriamento de bens culturais.
Em 2001, George W. Bush assume o comando do país e reforça o posicionamento do seu partido, retirando a assinatura de Kyoto. Repetindo a narrativa do seu pai, ele alegava que os compromissos acarretados por tal protocolo interfeririam negativamente na economia norte-americana. Como alternativa, estabeleceu medidas internas pífias de combate ao aquecimento global e propôs a alguns países responsáveis pelas maiores emissões de gases de efeito estufa que se reunissem para tentar definir metas voluntárias de redução de emissões. Os EUA passaram a atrapalhar sistematicamente as negociações internacionais desde então, tomando um pito histórico da pequena Papua-Nova Guiné na plenária final da conferência de Bali, em 2007: “Ou vocês lideram ou saem do caminho”, ralhou o delegado papuano Kevin Conrad (por sinal nascido nos EUA).
Em 2009, já quando o país estava sob o comando de Barack Obama, havia forte expectativa de que a COP15, a conferência de Copenhague, produzisse enfim um acordo internacional forte e com os EUA de volta à mesa. Mas Obama e o presidente da China, Hu Jintao, selaram o destino de Copenhague meses antes do encontro, ao decidirem que não estavam prontos para metas legalmente vinculantes. Após duas semanas de negociação e embates, o governo americano apresentou, junto com Brasil, China, Índia, UE e África do Sul, uma frouxa declaração política no lugar de um acordo internacional.
O “pacto”, chamado Acordo de Copenhague, não pôde sequer ser adotado formalmente pela conferência, por oposição dos países “bolivarianos”. A inepta presidência da COP15 anunciou apenas ter “tomado nota” do documento. Os olhares enviesados frente à indisposição americana de negociar acordos climáticos foram reforçados alguns anos depois, quando documentos vazados por Edward Snowden mostram que os EUA espionaram outros países durante a ocasião, minando ainda mais a confiança no governo americano e no processo.
O conturbado histórico americano nas negociações climáticas da ONU parecia ter dado uma trégua em 2015, quando o Acordo de Paris, que estabeleceu metas para que os países consigam manter o aquecimento global abaixo de 2oC, buscando limitá-lo a 1,5oC, foi pactuado por centenas de países, entre eles China e Estados Unidos. Antes e durante as negociações, o segredo do sucesso diplomático foi a elaboração de um tratado que respondesse às demandas americanas e que pudesse ser ratificado por decreto presidencial, sem passar pelo Senado de maioria republicana. Entre as resoluções, estavam a de não impor metas internacionalmente determinadas a cada um dos países nem multas para o descumprimento das metas.
Mas o “sucesso” não durou muito tempo. Com a eleição de Donald Trump em 2016 e a volta do Partido Republicano ao cargo mais alto, não tardou para que o país pulasse fora mais uma vez da negociação climática. Seguindo um modelo político que ao longo dos últimos quatro anos enfraqueceu várias leis de proteção ambiental, Trump não tardou em anunciar a saída do acordo alegando que o pacto feria a soberania do país e era desvantajoso para os interesses da economia americana.
De acordo com Eduardo Viola, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador sênior da Universidade de São Paulo (USP), apesar de o tratado mais recente ser frágil do ponto de vista substantivo da mitigação da mudança climática, é o único vigente a nível mundial, e por isso a retirada americana tem um significativo impacto negativo na política internacional. Exemplos anteriores, como a retirada do país do Protocolo de Kyoto, já demonstraram que o movimento pode servir como uma “bola de neve”, induzindo outras nações a fazer o mesmo. Além disso, o impacto financeiro deverá ser sentido, já que o acordo prevê que países ricos ajudem os mais pobres financeiramente a se adaptar às mudanças climáticas e na adoção de energias renováveis. Os EUA eram o maior doador do Fundo Verde do Clima, criado na negociação do Acordo de Paris para financiar a transição energética e a adaptação nos países em desenvolvimento.
É o que defende também o ambientalista Rubens Born. De acordo com o especialista, embora muitos Estados americanos tenham se comprometido em manter as metas de redução das emissões mesmo com a saída do acordo, o “mundo perde politicamente, economicamente, ambiental e socialmente”. Os EUA contribuem com cerca de 15% das emissões globais de carbono, número que vem registrando queda. Mesmo com a saída do acordo, elas devem continuar a cair nos EUA por causa do crescimento do investimento em gás e fontes renováveis de energia em substituição ao carvão, só que agora sem uma estratégia global “A saída representa um atraso de 30 anos, porque desde 1990, quando se iniciaram as negociações, havia uma expectativa de que isso deveria ser um esforço global, coletivo”, conclui.
Apesar de toda especulação sobre a saída, ainda há esperança que ela seja apenas temporária. Quem irá determinar serão as urnas americanas, pois durante toda campanha eleitoral, o democrata Joe Biden prometeu como uma das primeiras medidas, caso eleito, se reincorporar ao acordo. Caso contrário, o esforço global para frear o aquecimento da Terra terá que continuar sem a maior economia do mundo. Biden propôs um plano de US$ 1,7 trilhão (cerca de R$ 9,7 trilhões) para que Estados Unidos chegue a uma marca de zero emissões líquidas de carbono em 2050. (JAQUELINE SORDI)