Agro é tudo. Mas nem tudo é pop
Qualquer discussão adulta sobre a importância e os desafios do agronegócio brasileiro precisa abandonar a seletividade na escolha de números e encarar com coragem o agro inteiro, escrevem Raoni Rajão e Carlos Rittl
RAONI RAJÃO
CARLOS RITTL
O agronegócio brasileiro é uma potência. O país é o quarto maior produtor mundial de alimentos. Colheu uma safra de 242 milhões de toneladas no ano passado, o que ajudou a manter superávit comercial no ano em que o país saía de uma das piores recessões de sua história. Direta e indiretamente, o agro responde por quase um quarto do PIB do país.
Além de tudo, graças ao uso intensivo de tecnologia, obteve ganhos de produtividade e evitou maior desmatamento – de 1991 a 2017, a produção de grãos e oleaginosas subiu 312%, mas a área plantada cresceu apenas 61%.
O agronegócio brasileiro é uma ameaça. Somos o país que mais desmata no planeta – 6.600 quilômetros quadrados na Amazônia só no ano passado, e 50% mais do que isso no cerrado. Em 2016, o país foi o sétimo maior emissor dos gases que causam o aquecimento da Terra. O setor agropecuário foi responsável por 74% das 2,3 bilhões de toneladas de CO2 e outros gases que lançamos no ar. Também é o setor que torna o Brasil recordista mundial em violência no campo – 65 assassinatos apenas em 2017, segundo a Comissão Pastoral da Terra – e alimenta a corrupção, com mais de R$ 600 milhões pagos em propina a políticos em 2014 somente pela JBS.
Qual das duas visões sobre o agro está correta? Evidentemente, ambas. Como diz a propaganda na TV, o agro “é tudo”: o bom e o ruim. O século XXI e o século XVI. A alta tecnologia e o trabalho escravo.
Nos últimos anos, porém, alguns ideólogos têm prestado um desserviço à agricultura brasileira, destilando estatísticas parciais sobre o agro “bom” e escondendo os problemas. Esses argumentos encontram eco em autoridades do governo e são trombeteados no Brasil e no exterior.
No final do ano passado, por exemplo, comemoraram-se dados da Nasa sobre a área cultivada no Brasil que supostamente dariam ao país “autoridade para enfrentar críticas dos campeões do desmatamento mundial”. Esta afirmação é, em si, problemática; voltaremos a ela. Vamos antes aos dados: segundo os ideólogos, a Nasa mostrou que o Brasil teria apenas 7,6% de sua área ocupada com agricultura, contra uma média de 20% a 30% de outros países. Ainda segundo eles, o Brasil “protege e preserva a vegetação nativa em mais de 66% de seu território”.
O primeiro dado é um exemplo acabado do que os americanos chamam de “cherry-picking”, ou seleção de observações. Como mostrou um artigo recente, esse dado se refere somente ao que a Nasa chama de “croplands”, ou cultivos agrícolas. Nenhuma palavra sobre a atividade que é a maior – e pior – ocupante de terras no Brasil, a pecuária. O país tem cerca de 65 milhões de hectares ocupados com agricultura, mas 230 milhões em pasto. É quase o território da Argentina, o 3º maior produtor global de soja. Incluindo as pastagens, o Brasil chega a 33% de seu território ocupado com agropecuária. Portanto, mais ou menos na média dos grandes produtores de alimentos.
O segundo dado traz outra artimanha. Vários comentaristas do agro dizem de boca cheia que o país tem 66% de terras preservadas com vegetação nativa. Mas olham o retrato, quando o que importa mesmo é o filme. Segundo o projeto MapBiomas, uma iniciativa multi-institucional da qual o OC faz parte, em 2016 o país tinha 64,1% de vegetação nativa remanescente. Mas, na virada do século, tinha quase 67,3%. Em 16 anos, perdemos o equivalente a um Estado de São Paulo em vegetação nativa. O cerrado, nosso segundo maior bioma, está reduzido à metade. O Pantanal perdeu 7% em 15 anos. O pampa, 13%. Essa vegetação sumiu dizimada pela agropecuária. O espaço para ganhos de eficiência é monumental.
Mesmo esses cerca de 66%, que alguns ruralistas insistem em chamar de maior percentual de florestas protegidas no mundo, não são assim tão extraordinários. Quem se der ao trabalho de olhar a excelente página de estatísticas do Banco Mundial na internet vai ver que vários países do mundo têm coberturas florestais semelhantes à do Brasil ou maiores que as nossas como proporção de seu território. Para ficar apenas na vizinhança: 98,3% no Suriname, 84% na Guiana e 57,8% no Peru. Na África, o Gabão tem 89% preservados, o Congo, 67,3% e a República Democrática do Congo, 65%. Na Ásia, o Japão tem mais florestas que o Brasil (68,5%) e a Coreia do Sul, quase o mesmo tanto (63,4%). Na Europa, a Eslovênia tem 62% e a insuspeita Suécia, cabalísticos 69%.
Então será que o Brasil tem mesmo “autoridade” para enfrentar as críticas dos “campeões de desmatamento”? E, a propósito, é possível botar na mesma balança, digamos, a Holanda (maior exportadora de alimentos do mundo), que perdeu quase toda a sua vegetação original desde os tempos do Império Romano, e o Brasil, que apenas na Amazônia desmatou em 50 anos o equivalente a mais de dez vezes o território da Holanda e o da Bélgica somados?
Falando em Europa, enquanto os propagandistas do agropop vendem a parte boa da produção brasileira em Bruxelas e Berlim, dentro de casa o setor toca uma agenda política do tempo da Companhia das Índias. Ao longo de 2017, em troca de votos no Congresso, a bancada ruralista pediu ao presidente Michel Temer – e recebeu – a legalização da grilagem em grandes áreas, o afrouxamento do conceito de trabalho escravo e a retirada dos direitos de populações indígenas que foram expulsas de suas terras antes da Constituição de 1988. E vem à carga total já neste início de 2018 para afrouxar o licenciamento ambiental, legalizar o agronegócio dentro de territórios indígenas e permitir a venda de grandes extensões de terras brasileiras ao capital estrangeiro.
Qualquer discussão adulta sobre a importância e os desafios do agronegócio brasileiro precisa abandonar a seletividade na escolha de números e encarar com coragem o agro inteiro. Dourar a pílula pode fazer bem ao ego e ajudar a justificar barbaridades no Congresso que só atrapalham a banda modernizadora do setor produtivo. Mas, num mundo em que sustentabilidade e baixo carbono deixaram de ser pauta ambientalista e passaram a estratégias de negócios, malabarismos estatísticos não enganam mais ninguém.
Raoni Rajão é professor em Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia no Departamento de Engenharia de Produção da UFMG e membro do Observatório do Código Florestal.
Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima
* Texto originalmente publicado no Valor Econômico em 20/02/2018.