[:pt][:pt]Com mais de 40 mortos e quase 50 desaparecidos, o Rio Grande do Sul vive nos últimos dias a pior tragédia climática de sua história. Uma supertempestade seguida de vários dias de chuvas anormais causou cheias nos rios da região central do estado, afetou mais de 170 mil pessoas e forçou mais de 8.000 a deixar suas casas – frequentemente em resgates dramáticos pelo telhado.
Zero surpresa para os climatologistas, que há tempos avisam que aquela porção da América do Sul ficaria mais chuvosa num planeta mais quente (ainda mais em ano de El Niño). Modelos climáticos em escala regional produzidos pelo Inpe e integrantes do grande estudo Brasil 2040, que o governo Dilma Rousseff encomendou e tratou ele próprio de enterrar em 2015, já estimavam os riscos no meio do século. Foram conservadores demais, como tem sido a regra com previsões de impactos climáticos.
Enquanto os gaúchos contavam os corpos e os prejuízos, a Convenção do Clima das Nações Unidas publicou um relatório que não faz nada para confortar as vítimas dessa tragédia e de outras, presentes e futuras. A chamada síntese do Balanço Global (Global Stocktake), o aguardado momento de ajuste de contas do Acordo de Paris, marcado para este ano em Dubai, mostrou o que todo mundo já sabia: os esforços de corte de emissões de gases de efeito estufa e de financiamento para adaptação e perdas e danos não chegam nem perto das demandas do clima e dos países mais pobres. O relatório diz que, se quisermos ter alguma chance de cumprir a meta de Paris de estabilizar o aquecimento global em 1,5oC, teremos de fazer com que as emissões globais cheguem ao pico em 2025 – algo que não parece estar no horizonte dos tomadores de decisão. O documento dá, ainda, o tamanho da lacuna financeira: US$ 830 bilhões investidos em economia verde no mundo por ano, contra US$ 1,35 trilhão em combustíveis fósseis; US$ 5,8 trilhões em necessidade de financiamento climático, contra US$ 83 bilhões desembolsados pelos países ricos em 2020. É uma conversa que tende a azedar na COP28, em Dubai, daqui a menos de três meses.
Para não dizer que ninguém aprendeu nada, o Brasil iniciou nesta semana a construção de um novo Plano Nacional de Adaptação, que terá participação da sociedade civil e um foco em atender a uma emergência climática que já se tornou crônica.
Doações para os desabrigados gaúchos podem ser feitas por aqui.
Boa leitura.
Decreto veda privatização de terras devolutas
Em 5 de setembro, Dia da Amazônia, o governo federal fez uma série de anúncios para enfrentar a crise do maior bioma do país. Uma das medidas mais importantes, à qual pouca gente prestou atenção, foi a reestruturação da Câmara Técnica de Destinação, que tem a função de definir a posse e o uso de florestas públicas. As áreas não-destinadas somam hoje área equivalente à da Espanha e são foco principal de grilagem e desmatamento. Ponto alto da reestruturação: a privatização de terras públicas devolutas está proibida. Esses territórios só poderão ser destinados a usos coletivos, como criação de áreas protegidas e assentamentos de reforma agrária. A demanda constava das propostas do Observatório do Clima para os 100 primeiros dias de governo, como parte da estratégia Brasil 2045.
O governo também anunciou o programa de parceria com municípios críticos do bioma, que destinará R$ 600 milhões do Fundo Amazônia para ações de combate ao desmatamento. Outro ponto alto: o repasse dos recursos está condicionado a desempenho e à conformação de um pacto político nas cidades. Cada município deve apresentar apoio formal do prefeito, presidente da Câmara de vereadores, de um deputado estadual, de um deputado federal e um senador do estado para receber a verba.
Queimadas caem, mas Amazonas sofre
Não deu nem tempo de comemorar a queda pela metade no número de queimadas no bioma Amazônia em agosto. A seca de setembro chegou chegando, justamente na nova fronteira de desmatamento, o estado do Amazonas. Nesta semana, Manaus e outras cidades foram encobertas pela fumaça (Folha). A situação é mais grave no sul do Estado, justamente onde a motosserra canta mais alto. Ao todo, um terço das queimadas em agosto se concentraram naquele que já foi o estado mais preservado da Amazônia. Ainda é cedo para saber se este mês, geralmente o pico da temporada de fogo (turbinado pelo El Niño), repetirá no resto da floresta o padrão do sul do Amazonas, mas há razões para otimismo: em agosto, a redução nas queimadas pareceu ter relação direta com a queda no desmatamento. Entre janeiro e julho, a queda nos alertas de desmatamento foi de 42,5%, em comparação com o mesmo período do ano passado. Mês passado, a área de alertas caiu 66%, em comparação com agosto de 2022. Leia mais aqui.
PL do licenciamento atual é o pior de todos, dizem ISA e OC
Uma nota técnica produzida pelo Instituto Socioambiental e pelo OC avaliou o PL 2.159/21, que pretende criar uma lei geral de licenciamento ambiental no país. A conclusão é que o texto, que pode ser votado a qualquer momento no Senado, é o pior já costurado desde a lei começou a ser discutida no Congresso, em 2004. Em resumo, ele basicamente acaba com o licenciamento no país, transformando mais de 90% das licenças exigidas hoje em autodeclarações que o empreendedor preenche pela internet. Leia aqui um resumo das barbaridades do projeto. E assista à entrevista coletiva que Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do OC, e Maurício Guetta, consultor jurídico do ISA, deram uma entrevista coletiva sobre o PL no dia 29 de agosto.
Mendonça fala em “direito de conquista” ao defender marco temporal
Foram dois dias de um voto delirante, que misturou Darcy e Berta Ribeiro, John Monteiro e Ayres Britto – para, no final, fazer uma defesa do marco temporal para as terras indígenas. O ministro “terrivelmente evangélico” André Mendonça reiniciou o julgamento do do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 sobre a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas ocupadas tradicionalmente por indígenas.
A infame tese do marco temporal (criada, vale lembrar, por um ministro reacionário indicado por Lula, Menezes Direito) defende que os povos indígenas tenham o direito de ocupar somente as terras em que já viviam ou disputavam “reconhecidamente” em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. O STF corre contra o tempo para julgar sua constitucionalidade, já que um projeto de lei estabelecendo o marco também avança no Senado, onde pode ser votado nos próximos dias na Comissão de Constituição e Justiça.
Mendonça, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), havia paralisado o julgamento por um pedido de vista. Levou três meses sentado em cima do processo para cometer a seguinte inovação jurídica: “As terras brasileiras foram passadas dos povos originários à coroa portuguesa pelo direito de conquista”. Ou seja, se os indígenas não tinham pólvora e vírus da gripe, azar deles. É o equivalente etno-histórico do “quem mandou usar saia curta?” O voto-embromação impediu que o STF fechasse o placar do julgamento, que está previsto para ser retomado no dia 20 de setembro. Mas até agora são quatro ministros contra o marco temporal (Alexandre de Moraes, Luiz Barroso, Edson Fachin, o relator, e, pasme, Cristiano Zanin) e dois a favor (Mendonça e Kássio Conká).
Pico de emissões precisa acontecer até 2025, diz ONU
Lançada ontem, a aguardada primeira síntese do Global Stocktake (GST) — o Balanço Global do Acordo de Paris, que acontecerá na COP de Dubai — reforçou o que todos já sabiam: são necessários mais esforços, mais ambição e mais velocidade para evitar o colapso climático. O documento aponta que o investimento na produção de combustíveis fósseis precisa ser redirecionado para a transição energética para que o planeta consiga limitar o aquecimento a 1,5 °C ou 2°C. O montante hoje direcionado para a ação climática em todo o mundo — US$ 803 bilhões — corresponde a apenas 32% do investimento anual necessário para implementar ações de mitigação consistentes com o aumento de até 2 °C na temperatura global. Enquanto isso, US$ 892 bilhões foram investidos em combustíveis fósseis por ano, e outros US$ 450 bilhões foram cedidos como subsídios à indústria anualmente em 2019 e 2020.
O GST apontou que há lacunas tanto na ambição das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs na sigla em inglês, a meta de cada país para o Acordo de Paris) quanto na sua implementação. Ou seja: o que propõem os países não é suficiente para atingir a meta de 1,5ºC, e nem isso está sendo feito. O cumprimento das atuais NDCs levaria a um aquecimento entre 2,4ºC e 2,6ºC, diz o documento, podendo ser reduzido à faixa entre 1,7ºC e 2,1ºC caso os compromissos de longo prazo para emissões líquidas zero sejam plenamente atingidos. Além disso, o pico global de emissões ainda não foi atingido, o que precisa acontecer até 2025. Isso quer dizer que muitos países já têm um crescimento de emissões “contratado” para os próximos anos, e que, para que a meta de 1,5ºC continue de pé, a COP de Belém é a data limite para que todos os países já tenham atingido seus níveis máximos de emissão e entrado em rota de redução.
Leia mais aqui.
Desmate acelerou no país após Código Florestal
Um novo levantamento do MapBiomas mostrou que houve aumento de 38% na perda de vegetação nativa cinco anos após a implementação do Código Florestal, na comparação com os cinco anos anteriores. Aprovado em 2012, o novo código empoderou a bancada ruralista e anistiou desmatamentos passados no Brasil inteiro. Entre 2008 e 2012, foram devastados 5,8 milhões de hectares; no período de 2013 a 2017, a cifra saltou para 8 milhões de hectares. Já nos últimos cinco anos, de 2018 a 2022, o desmatamento foi de 12,8 milhões de hectares, um aumento de 120% em relação ao período de 2008 a 2012. Leia a análise completa aqui.
Salles é réu de novo e já quase pode pedir música
Agosto terminou com o ex-ministro do Meio Ambiente e atual deputado federal Ricardo Salles tornado réu por fraude ambiental pela segunda vez. Agora, Salles é acusado de liderar uma organização criminosa de contrabando de madeira. A origem da investigação é anterior à famosa Operação Akuanduba, da Polícia Federal, que culminou com a demissão do ex-ministro do MMA em 2021. Um ano antes, uma ação civil pública da sociedade civil, movida contra a União e o Ibama, exigia a anulação do despacho que liberava a exportação de madeira nativa sem fiscalização. Eduardo Bim, presidente do Ibama à época, também é réu no mesmo processo de Salles.
A tempestade política no Rio Grande do Sul
Duas referências para entender o quanto a tragédia no Rio Grande do Sul levantou sensibilidades no meio político: uma é o vídeo imperdível do jornalista André Trigueiro batendo boca com o governador do estado, Eduardo Leite. A outra é a coluna de outro Leite, o Marcelo, na Folha.
Na playlist
Emicida não fez a música pensando no Global Stocktake, mas esta bem poderia ser a trilha sonora do novo relatório da Convenção do Clima: Final dos Tempos.
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